Os mitos sempre surgem nas aflições e são populares porque sempre as aflições afectaram o povo. A floripes é agora uma espécie de promotora turística que, na versão de estátua ou de agente de viagens, inicia a assombração dos viajantes pois os pescadores já deram o que tinham a dar. O menino dos olhos grandes, que continua a inchar quando lhe pegam, tornando-se peso insuportável, chama-se agora investimento externo empresarial, servindo lucrativamente negócios de construção e de simpático empreendedorismo da família que o adoptou e de todos os seus amigos, mas quando algo corre mal, na sua postura de coitadinho, é o povo que o sustenta, à custa de todas as taxas e impostos municipais que até a água tributa. Todos estes actores fazem parte de um conto que é o mito da “cidade da qualidade de vida”, onde toda a gente vive, com a Alice, num “país das maravilhas” cheio de sorrisos encantados, de gente prestável e típica, de criados que servem caprichos, de artistas que se vendem para abrilhantar salões alheios, de benfeitores que acodem pobres como se fossem animais domésticos.
Neste filme continuaremos a viver com a exclusão ao lado como se nada fosse, como se fosse residual, como se qualquer assistencialismo de fachada pudesse resolver problemas que são estruturais mas que a gestão tradicional incompetente não reconhece nem tem instrumentos técnicos e de planeamento para os reconhecer e, em sequência, os combater. Os cidadãos vão-se amontoando nos pântanos da exclusão - pobres que já vão ao lixo, novos pobres que já vão à sopa, pessoas portadoras de deficiência ou incapacitadas que esbarram quotidianamente nos obstáculos e nos preconceitos que lhes retiram mobilidade, emprego e ocupação, doentes mentais sem tratamento transformados nas ruas em “bobos” ou “figuras típicas”, pedintes de todos os credos e motivações.
Há que resistir aos mitos e voltar a pôr a população e os recursos no centro. A actividade política só é importante se servir os cidadãos e, frente a frente, lado a lado, compreender os seus anseios e críticas, modelar as prioridades, intervir com eles na mudança e construir com eles a verdadeira e quotidiana qualidade de vida. Se não continuaremos na senda dos aflitos, sem Senhora que nos proteja pois a crise parece também ter chegado aos milagres...