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"afirmamos a necessidade da democracia participativa"

Cidadãos e cidadãs.

Srs. Deputados à Assembleia Constituinte.

 

Comemoram-se hoje os 40 anos sobre a primeira vez em que, neste país, se realizou um processo eleitoral livre e universal. Neste escrutínio puderam participar todas as mulheres e todos os homens, cidadãs e cidadãos deste pais. Votaram 91,7% das eleitoras e eleitores recenseados; esta é, não por acaso, a melhor marca de sempre da nossa democracia representativa.

Deste processo resultou a eleição dos deputados pelo círculo do Algarve, a quem hoje aqui homenageamos.

A constituição da República Portuguesa foi aprovada por todos os deputados eleitos pelo Algarve no dia 2 abril de 1976.

É ainda deste texto fundador da III República, que derivam, apesar de algumas alterações nefastas que nele foram introduzidas, os direitos, garantias e deveres da nossa condição de cidadãos.

A Constituição da República não é, apenas, tinta derramada sobre papel, ou diploma a ser esgrimido nos tribunais superiores, a Constituição da República Portuguesa é o contrato que regula as relações na nossa comunidade, razão pela qual é nossa obrigação defendê-la de modo intransigente.

Se há, quarenta anos, vivíamos o início da democracia representativa, vivia-se também o período, política e socialmente, mais intenso da "Revolução de Abril". O chamado "Período Revolucionário em Curso" de 1975 foi uma experiência de cidadania inenarrável; recheada de acontecimentos que só podem ser corretamente descritos por quem, que não eu, os viveu na primeira pessoa.

O PREC foi uma enorme experiência de democracia participativa, no qual as populações tomaram nas suas mãos a resolução dos seus problemas. Floresceram, então, pela nossa geografia comissões de moradores, comissões de trabalhadores, unidades coletivas de produção e empresas em autogestão.

No Algarve é icónico o Serviço Ambulatório de Apoio Local de Lagos, que deu origem ao Bairro da Meia Praia.

O PREC foram 580 dias, em que experiências diversas de democracia direta se desenvolveram, lado a lado, com o processo constituinte, pilar da democracia representativa.

Se esta experiência da democracia participativa foi destruída pelo golpe do dia 25 de novembro de 1975, quarenta anos volvidos, os resultados da democracia representativa não nos podem deixar satisfeitos.

Nas primeiras eleições a abstenção foi de 8,3%; desde então ela foi subindo em crescendo, e, nas últimas eleições legislativas ela foi de 41,9%! (registe-se que em Faro nas ultimas eleições autárquicas a abstenção ultrapassou largamente os 50%).

A democracia não se esgota na deposição do voto nas urnas; os partidos defensores da democracia representativa como único sistema de representação política são os mesmos que vêm contribuindo para a sua degradação.

Tal degradação resulta da perpetuação da casta que circula entre os partidos do arco do poder e o mundo da finança e dos grandes escritórios de advogados. Há uma clara promiscuidade entre quem faz as leis e quem delas beneficia; as mesmas personagens são, simultaneamente ou sucessivamente, legisladores e parte interessada ou representantes destas, um dia reguladores outro regulados.

É difícil ao eleitor saber quem representam os membros do governo: se o partido e o programa vencedor das eleições ou um ou mais grupos económicos. Veja-se que o número de funcionários do defunto Grupo Espírito Santo no governo da república se tem mantido constante pelo menos nos últimos 20 anos.

Espera-se que a abstenção continue a subir pela inutilidade do voto. O voto torna-se inútil sempre que um governo é eleito com um dado programa e implementa políticas que não submeteu ao julgamento popular; atente-se no programa e na prática governativa do atual governo. O Presidente da República, neste cenário, tem-se comportado como uma verdadeira flor em jarra de fina porcelana colocada em alto pedestal, pois demitiu-se do papel que a Constituição lhe atribuiu.

Quarenta anos passados sobre o início do processo constituinte, se não rejeitamos a democracia parlamentar representativa como sistema de representação política, assumimos a importância histórica e social dos 580 dias do PREC, e afirmamos a necessidade da democracia participativa, da democracia popular, como uma forma avançada de participação política que permite romper com a casta que colonizou, e parasita, o sistema representativo que urge reformar.

Nestes dias em que os vários populismos, antecâmaras do totalitarismo, assombram a prática política nacional e local, urge aumentar a qualidade da democracia local, quer ao nível das propostas, quer dos atores. Também nesta casa se verificam práticas políticas em que o interesse de alguns se sobrepõe ao interesse da comunidade, veja-se, entre outros, o recente exemplo do Parque de Campismo Municipal, em que os interesses de uns tantos parecem ter prevalecido sobre os da comunidade. A participação democrática se não é compatível com decisões tomadas no secretismo de gabinetes, também não pode ser confundida com a audição de apenas um dos interesses envolvidos. Se não estiverem asseguradas formas de participação de toda a população e de todos os interesses em jogo, confunde-se populismo oportunista com democracia popular! 

 

"há quem cante por interesse

há quem cante por cantar

há quem faça profissão

de combater a cantar

e há quem cante de pantufas

para não perder o lugar"

 

in a Cantiga é Uma Arma, pelo Grupo de Ação Cultural - Vozes na Luta

Faro, a 25 de Abril de 2015

José Moreira

Eleito pelo Bloco de Esquerda à Assembleia Municipal de Faro