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Venezuela no fio da navalha. E o mundo?

Venezuela

Toda a direita pró ocidental se une, em grande alarido por todo o planeta, desde os que enchem a boca de democracia até à extrema-direita fascista, e rejubila com o golpe de estado em curso na Venezuela.
Até mesmo a grande maioria dos sociais-liberais se encarreira atrás dessa onda, como se vê nas declarações da UE, de que o governo português é um lamentável exemplo.
Não fora a fidelidade das forças armadas a Maduro, o apoio ainda significativo de bastantes sectores populares chavistas e a rejeição do golpe por alguns governos latino-americanos, pela China e pela Rússia, já hoje o terrorismo estadunidense teria, directamente, ou pelas armas dos para-militares e dos exércitos colombianos e brasileiros, passado a definitivo o interino Guaidó, dando início aos massacres e perseguições e à aplicação desenfreada do programa de choque neoliberal há muito agendado.
Num cenário tantas vezes repetido, toda a esquerda permanece fragmentada.
Nos últimos dias, perante o desencadear do golpe descaradamente comandado pelo governo americano e pronto para a agressão militar, as diversas variantes da esquerda a nível mundial condenam a ingerência e apelam ao diálogo e a eleições pacíficas. No entanto, há sectores que só agora saem do ataque sistemático a Maduro, da quase ausência de valorizar o papel dos EUA e dos seus acólitos na Venezuela, na América Latina ou na Europa, e se insurgem de modo mais vincado contra as ingerências e o boicote económico. E outros há, ainda, que nem disso são capazes.
Na iminência da guerra civil e do caos total sobre o povo venezuelano, as esquerdas continuam impotentes, desunidas, apenas promotoras de simbólicas declarações ou de abaixo-assinados deste e daquele grupo de intelectuais.

E o mundo?
As direitas e as suas nuances extremistas aumentam o seu poder político e ideológico por todo o mundo. A social-democracia, nas suas várias expressões governamentais, em ritmo mais ou menos acelerado, converteu-se às políticas neoliberais.
A crise do neoliberalismo capitalista leva a que sectores em disputa pelo poder nos EUA e em outros países busquem saídas ainda mais radicais. Ao mesmo tempo procuram manter o domínio militar e territorial com o reforço e expansão da Nato e de bases em mais países sob o seu poder directo ou interposto. A China e a Rússia, em disputa global com os EUA, tentam ganhar ascendente, consolidando o seu poder regional e procurando alargá-lo, por agora sobretudo através da expansão económica.
É uma situação de tensões e rivalidades crescentes que fazem permanecer os conflitos e as guerras locais e regionais, e que, a manter-se esse rumo, aumentam o risco de futuras conflagrações de muito maior dimensão.
As esquerdas, mais ortodoxas ou mais novas, esforçam-se, em alguns países com algum sucesso, por ganhar influência popular e dimensão eleitoral capaz de terem voz activa e até de aspirarem a ser governo. Mas, em muitos outros, essa projecção está muito longe, ou recuou.
Porém, no que respeita ao panorama geoestratégico mundial, de importância cada vez mais determinante para o destino dos povos, o seu papel e acção são insignificantes.
Praticamente, limitam-se a ser analistas de cada conflito que surge, ou que se agrava. Em regra, as tomadas de posição expressam-se a reboque das situações que os meios de informação dominantes agitam. E logo desaparecem, ou estagnam, à medida que os acontecimentos saem de cena ao sabor dos interesses imperiais.
Quanto mais o capital se globaliza, e a solução Trump não deixa por um instante de querer manter o poder global, menos a resposta revolucionária se une e se levanta para enfrentar o capital e lutar pela emancipação dos povos.
Como poderá a esquerda atrair sectores hesitantes, partidários ou sociais, estabelecer alianças mesmo que transitórias, se ela continuar incapaz de forjar um programa mínimo próprio geoestratégico e, em torno dele, unir-se e agir com independência e sem vacilações?

Um programa próprio…
É esta realidade tão precária das esquerdas que é urgente encarar. É para isso que somos convocados, perante a impotência face ao drama da Venezuela, como da Palestina, da Síria, do Iraque, da Líbia… Desde todo o Médio Oriente, ao Afeganistão, à Ucrânia, a grande parte da América Latina e da África… aos migrantes e refugiados sem refúgio, na Europa.
Sob este olhar, vale de muito pouco a auto-suficiência de posicionamentos que se acham muito conhecedores de tudo o que se passa aqui e além. Mas que nem sequer pensam em sair à rua contra os fautores dessas tragédias, contra a Nato de que dizem querer a dissolução, contra o securitismo da UE e do seu exército em construção. E, mesmo aqueles que por vezes o fazem, são incapazes de um protesto “que se veja”.
Só a construção de um programa mínimo comum para enfrentar a disputa geoestratégica das potências globais poderá trazer ao primeiro plano dessa disputa a acção própria e independente das esquerdas.
Esse programa passa, em primeiro lugar, pela denúncia e pelo combate ao imperialismo dos EUA e dos seus serventuários, rejeitando a sua intervenção armada e sanções unilaterais, directas ou por si comandadas, para derrubar ou controlar governos de outros países e subjugar os seus povos.
Mas passa também, por rejeitar quaisquer intervenções armadas de qualquer potência ou coligação, mesmo que ditas humanitárias, em qualquer país.
Pela construção de um movimento global pela Paz, contra as guerras. Pela rejeição dos poderes fácticos das grandes potências, recusando-lhes qualquer autoridade para se assumirem como árbitros e juízes de conflitos ou de terceiros países, sempre que seguem uma política de “dois pesos duas medidas” na diplomacia e nas relações internacionais.
Pelo fim de todas as actuais acções armadas de uns Estados sobre outros. Pelo restabelecimento da paz e da soberania em cada um dos estados atacados, através do diálogo e negociação entre as forças políticas e sociais internas.
Pela reparação internacional, em primeira mão pelos causadores directos e pelos mandantes dos desastres e morte das populações, da destruição das infra-estruturas e das actividades básicas de cada um desses países e pela sua reconstrução sob direcção dos governos locais.
Pelo fim do boicote aos migrantes e refugiados causados por esses conflitos e pelos seus efeitos em países limítrofes. Pelo seu acolhimento em condições mínimas de vida digna e pelo regresso aos seus países quando pacificados e sempre que o desejarem.
Recusa da actual designação manipuladora de “comunidade internacional” ao serviço dos interesses imperiais. Defesa da reforma das regras da ONU que permitem a sua manipulação pelas principais potências, promovendo o respeito pela norma de “um país, um voto” e a eliminação do direito de veto.
Defesa da soberania de cada Estado no seu território e do direito à autodeterminação dos povos, sem a ingerência de terceiros.
Pela resolução pacífica e diplomática de quaisquer conflitos entre países.
Pelo desarmamento global, nuclear e de guerra convencional, pela dissolução da Nato e outras alianças militares agressivas e dos tratados opressores dos povos, politica e economicamente.
Pela redução das forças armadas e orçamentos militares em cada país, em primeiro lugar nas principais potências, revertendo para medidas de diminuição das desigualdades sociais e das reparações das guerras por elas causadas.
Pelo fim da venda legal de armamento militar e pelo combate ao tráfico, em primeiro lugar para os Estados em guerra ou promotores de conflitos armados e para os grupos mercenários qualquer que seja a sua natureza.
Pelo fim das fábricas de armamento de guerra e da sua publicitação. Pela sua reconversão para o investimento económico básico e ecologicamente sustentável.
Estas e outras consignas, o seu debate e aperfeiçoamento táctico e estratégico, que saiba aproveitar as contradições entre as maiores potências mundiais e o grau da sua perigosidade relativa, constituem a reflexão e a acção urgente que as esquerdas radicais têm a obrigação de empreender se quiserem abandonar o impasse em que se encontram e estar à altura dos princípios e objectivos que tanto proclamam.